Um breve relato sobre o Seminário Nacional de Educação Popular em Saúde

Imagem de público presente no Seminário, com uma série de pessoas ocupando o espaço do Centro de Convenções

03/06/2014
Por Daniela Muzi (Icict/Fiocruz)


– De onde você é?
– Eu sou do Rio. E você?
– Eu também sou do Rio, do Rio Grande do Norte – Os dois riem.
– É tem razão. Que abuso o meu de achar que só tem o Rio de Rio. Você também é do Rio, do Rio Grande do Norte.

 

Esse primeiro encontro, logo que cheguei no hotel, deu a tônica de toda a experiência que foi ter participado do Seminário Nacional de Educação Popular em Saúde, promovido pela primeira vez pelo Departamento de Apoio à Gestão Participativa da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) do Ministério da Saúde (MS). O evento foi realizado entre 22 e 24 de maio, em Brasília, como parte da agenda comemorativa dos 10 anos da SGEP, que corresponde também ao reconhecimento do Ministério à Educação Popular em Saúde. Relativizar, como diriam os antropólogos, sair da zona de conforto, como diriam os psicólogos, e ir além do conhecimento científico e acadêmico, ao encontro do conhecimento tradicional. 

Poucas semanas antes, tive o prazer de estar em uma aula do professor Gil Sevalho (Ensp/Fiocruz) sobre educação popular. Eu, inserida no contexto da Comunicação e Saúde, tinha percebido o perfeito diálogo entre os dois campos. Não imaginava que logo iria vivenciar na prática esse encontro.

Foi em um auditório do Centro Internacional de Convenções do Brasil, cujas cadeiras milimetricamente perfiladas foram postas em roda pelo maestro que dia responde pelo nome de Oris Day: a roda de conversa de Paulo Freire (como poderia ser de outro modo?). Mas e o palco no alto com os sofás brancos para os integrantes da mesa de abertura? Levou um tempo para o mestre de cerimônias entender que ninguém iria se virar e dar as costas para o grande círculo que se formou. Sob o coro de “Vem pra roda”, representantes do Governo Federal, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e Conselho Nacional de Saúde ficaram todos na mesma roda, com os cerca de 200 participantes do evento. Roda abrilhantada ainda pela ilustre presença de educadora Nita Freire, viúva do mestre Paulo Freire. 

Não por acaso era o Dia do Abraço, abraçamos uns aos outros. 

Os sofás continuaram solitariamente brancos até o fim do evento e o palco, somente a cultura popular pisou.  
    
Com os olhos marejados de encantamento, 
comecei os meus apontamentos. 
Sabia que não podia me ater somente ao fato, 
assim não seria educação popular,  
tinha que ser um relato e, se possível, ainda rimar. 
Assim fui eu, de bloco e coração na mão, anotando a minha impressão. 
Como não tenho o brilhantismo do comediante Mossoró, 
que versou por cinco minutos somente com a letra “C”, 
minha rima dura um parágrafo só, 
mas ainda sim vou continuar a escrever.

Nita Freire falou sobre o que é Educação Popular em Saúde (EPS): “Encontrar o pleno atendimento da saúde com uma regra científica, a partir dos rituais populares, através do respeito, da tolerância, da amorosidade com o outro.” Como disse o Diário Oficial da União, no último dia do Zumbi, “amorosidade é a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e nação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado somente nos conhecimentos e argumentações logicamente organizadas.” A amorosidade é o segundo princípio da Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), que começa com: diálogo; problematização; construção compartilhada do conhecimento; emancipação; e compromisso com a construção do projeto democrático e popular. O que podemos querer mais para o SUS?

O Seminário foi um grande espaço de debates, trocas de experiências e reflexões sobre a PNEP-SUS, recentemente pactuada no SUS, e reuniu movimentos populares, educadores, técnicos do MS, gestores e trabalhadores da saúde – para a infelicidade do encontro, menos gestores locais do que era preciso. Abro aqui as aspas para ilustrar o acontecido: “Como o Ministério reconhece essas práticas e as secretarias regionais não reconhecem?”, indagou o coletivo. Aprendi a partir da EPS que o pensamento é coletivizado, sem nomes. “Se o povo governasse realmente, se fosse executado pelos gestores, o Brasil seria bem melhor”, também comentaram no Seminário. Desafios do SUS.

Institucionalizada no fim de 2013, através de portaria do Ministério da Saúde, a PNEP-SUS define as diretrizes e estratégias a serem desenvolvidas no âmbito do SUS pelas gestões estaduais, municipais e federal. Como li no Blog da Saúde, “É uma política que vem ao encontro da gestão com o desafio de pensar a educação popular em saúde no campo da formação, gestão e do cuidado”, resume Kátia Souto, diretora do Departamento de Apoio à Gestão Participativa (Dagep). “Uma política construída com o olhar de todos e não por um comitê”, conforme ouvi.

Ouvi também que os fins não justificam os meios e que a amorosidade deve começar de agora. Também ouvi que EPS não é coisa para pobre, é um posicionamento político de respeito à cultura e que o seminário era mais que um evento, era uma expressão política. Nada mais justo. Justíssimo. Mas, como transformar o PNEPS-SUS em realidade? Essa é a questão. Lá, eu ouvi dizer que tudo deve ser feito no respaldo da lei e o primeiro passo foi dado com a criação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde e o lançamento do Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas, promovido pela Secretaria Geral da Presidência da República. O Marco de Referência expressa o esforço do Governo Federal para articular os processos educativos/formativos realizados nos múltiplos setores das políticas públicas, como também apresentar um referencial político-metodológico, a fim de fortalecer a participação popular nos espaços de controle social. Também ouvi que não há reforma política sem participação popular e que é preciso fazer o controle social do controle social. 

Nesses três dias, eu vi o SUS em sua essência: integral, universal, com equidade, regionalizado, descentralizado e com a participação popular. Agentes de conhecimento tradicional, acadêmicos, profissionais de saúde e gestores, pés descalços e calçados. Parteiras, rezadeiras, gente de todas as cores e sabores desse Brasil grande que não se aguenta. Ouvi dizer lá que o circo está de portas abertas para os SUS, e por que não? A alegria mora ao lado do cuidado. 

Faltou falar do meu segundo encontro, com a minha colega de quarto. Quando eu contei que era a minha primeira vez em um evento de educação popular ela disse assim: “Você vai se apaixonar pela educação popular”. O que dizer diante do fato consumado e do relato terminado?  Fiz outra poesia, se é que tem valia. 

Cuidado, o amor que mora ao lado
O amor me pegou por inteiro.
Tomei um banho de amorosidade.
Não consigo rimar, 
não consigo pensar,
tento não chorar.

Que coisa linda é o amor ao próximo:
gratuito, intenso, espontâneo, livre, sem retorno.
Não quer nada em troca,
porque dar é muito mais que receber.
É essa a forma de amar
da educação popular
E o povo sempre sabe das coisas.

O cuidado. Ah... o cuidado...
O cuidado quando nos é dado é o céu.
O céu na terra, estar na barriga da mãe.
Ah, seu eu fosse Manoel de Barros...
certamente falaria melhor do cuidado.
Que é tomar conta com carinho 
da pessoa feito passarinho.
Toca de mansinho, fala de mansinho.
É como água doce pra beber
Que adoça o nosso ser.
Ah, se as pessoas recebessem mais cuidado, 
O mundo seria muito melhorado.

 

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Daniela Muzi, jornalista que mora no Rio, Rio de Janeiro, de janeiro a janeiro. Integra a equipe da VideoSaúdeo Distribuidora da Fiocruz.