Entrevista Felipe Machado: Mudança de valores para um sistema público e solidário de saúde

Foto do entrevistado Felipe Machado, pesquisador e professor da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

15/05/2015
Equipe PenseSUS


O fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e a manutenção de seus princípios de universalidade, integralidade e equidade esbarram em uma série de desafios, tais como transpor a associação evidente na sociedade brasileira de que o que é público é ruim e o que é privado é bom. Quem faz esta observação é Felipe Machado, membro do Conselho Curador do site PenseSUS e professor e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

Em entrevista ao PenseSUS, Machado destaca a necessidade de um encantamento da população com o SUS e analisa esses e outros desafios, ressaltando a importância da transformação de alguns valores já arraigados e da ocupação de espaços de participação para a defesa do direito à saúde. “Acredito que o fortalecimento do SUS e dos direitos passe pela ocupação efetiva dos espaços instituídos de participação (refiro-me não só a conselhos e conferências, mas também a ouvidorias, auditorias, Ministério Público etc.) e pela criação de novas estratégias para garantia de direitos que alimentem de demandas e de reflexões os espaços institucionalizados”, ressalta o pesquisador.

 

PenseSUS: Quais são os principais desafios para o Sistema Único de Saúde?

Felipe Machado: Para mim, o SUS hoje tem um grande desafio que passa pela necessidade do “encantamento” das pessoas com a saúde pública. Não diria nem re-encantamento porque tenho dúvidas se o SUS algum dia foi a grande bandeira de luta mobilizadora de toda a sociedade. Esse encantamento passa necessariamente pela transformação de alguns valores já muito arraigados na sociedade brasileira (e por isso muito difíceis de serem mudados), associados ao individualismo de mercado. O SUS apresenta um conjunto de princípios fundadores que são extremamente progressistas e humanitários: universalidade, igualdade e gratuidade. E acho que a manutenção desses princípios está em questão hoje. Cada vez mais vivemos sob a lógica de que o público é ruim e o privado é bom. Assim utilizar o público é uma marca do fracasso no mercado. Cada vez mais a sociedade se retira do público, não só da saúde, mas da educação, do transporte, da segurança, do lazer... cada vez mais buscam opções individualizadas no mercado de algo que o público oferece e que é necessariamente ruim. 

O Brasil não conseguiu construir ao longo do seu processo democratizante um sentimento de solidariedade que fizesse com que os cidadãos se reconhecessem como iguais na apropriação dos serviços do Estado. Ao contrário, parece ser uma marca da nossa cultura querer se diferenciar do que é coletivo, como se o coletivo não fosse justamente o que dá materialidade à própria ideia de sociedade. A PEC 451 está perfeitamente ajustada a essa lógica, pois visa incluir o plano de saúde como direito trabalhista e quer obrigar aos contratantes “custear” planos de saúde para seus empregados. Só utilizarão o SUS os desempregados, portanto, aqueles que não obtiveram sucesso no mercado, e porque não se empenharam suficientemente em conseguir um emprego serão estigmatizados como "usuários do SUS". 

Uma coisa é reconhecermos que o sistema de saúde tem graves problemas – e tem muitos. Outra coisa é abandonar esse sistema como algo fracassado e falido. Isto não é verdade, inclusive porque a única forma de garantirmos, por exemplo, a integralidade da atenção e a universalidade é por um sistema público e solidário de saúde. 

(...) O abandono de um projeto societário baseado na igualdade, universalidade e gratuidade só fará aumentar as clivagens sociais já existentes, não garantirá qualidade (muito menos integralidade) e fará com que o SUS torne-se de fato e de direito um serviço para pobres, marcando socialmente uma diferenciação entre quem trabalha e os desempregados. 

Como inserir efetivamente a saúde na agenda de desenvolvimento econômico e social do país?

Acho que a saúde já está na agenda de desenvolvimento econômico do país. O que não está é a saúde pública como referência de desenvolvimento social. A ampliação da cidadania no Brasil passa necessariamente pelo intenso esforço de garantia dos direitos na saúde e na educação para a população brasileira. Direitos já previstos e garantidos em lei que o Estado tem a responsabilidade de garantir para a população.

O que é preciso ser feito para que o SUS seja reconhecido como política pública e exemplo da democracia brasileira? 

A democracia brasileira ainda é uma experiência muito recente e ainda precisa se desenvolver muito para alcançarmos um nível de sociabilidade democrática que seja capaz de dar respostas positivas às expectativas da população. O setor saúde apresenta um arranjo institucional que tem grande potencial de incluir a sociedade e seus anseios. O desafio, no entanto, é superar os arranjos institucionais em direção a uma democracia substancial. A prática tem demonstrado que as localidades com governos mais abertos à participação têm experiências mais intensas e produtivas do que as localidades com governos menos abertos. Isso demonstra que apenas arranjos institucionais ainda são insuficientes para garantir uma democracia efetiva. Por outro lado, os arranjos institucionais são fundamentais para a democracia. Acredito que o fortalecimento do SUS e dos direitos passe pela ocupação efetiva dos espaços instituídos de participação (refiro-me não só a conselhos e conferências, mas também a ouvidorias, auditorias, Ministério Público etc.) e pela criação de novas estratégias para garantia de direitos que alimentem de demandas e de reflexões os espaços institucionalizados. Não acho que o SUS como é hoje seja referência para a democracia. O exemplo democrático está nos mecanismos participativos institucionalizados, mas que não têm sido suficientes para garantir a democracia. 

Como aumentar a participação social na defesa do direito à saúde?

A participação social está relacionada tanto aos canais institucionais existentes, quanto à própria vontade política da sociedade. Se a saúde pública não se tornar uma bandeira de luta relevante não será objeto de participação efetiva. Infelizmente o momento político-econômico-social não é propício para isso. A saúde privada vem tendo uma força mobilizadora maior, sendo objeto frequente de manifestações e reivindicações. As fragilidades da saúde pública hoje não são específicas do setor saúde, mas dizem respeito a toda sociedade e o Estado brasileiro tem que se democratizar como um todo. Infelizmente, o aumento da participação social na saúde não passa apenas pela saúde.

Quais temas não podem ficar de fora do debate para 15ª Conferência Nacional de Saúde?

A 15ª CNS deveria se dedicar também a discutir esses desafios tratados aqui relacionados à participação na saúde. E, sobretudo, às defesas necessárias para avançarmos no sentido da saúde como um direito de cidadania e não como um direito de consumidor. Atualmente, a saúde tem estado centrada no marco do mercado privado de consumo individual e não no marco da afirmação da cidadania.

Como tornar as propostas decorrentes da Conferência mais efetivas, contribuindo para a política nacional de saúde e para o SUS nos próximos anos?

O objetivo do relatório da Conferência deve ser servir como referencial de atuação política e não necessariamente um conjunto de normas que devem ser tomadas como regra de atuação. O processo democrático não se esgota na Conferência Nacional, ela é ao mesmo tempo a tentativa de síntese de processos já disparados na sociedade e também trampolim para novas reflexões que devem ser feitas em conjunto pelos gestores, participação institucionalizada e sociedade de forma geral.