Entrevista Michely Ribeiro: o SUS deve atender a multiplicidade das populações

Foto de perfil de Michely Ribeiro, falando ao microfone

29/05/2015
Equipe PenseSUS


Seguindo a série de entrevistas com membros do Conselho Curador do PenseSUS em comemoração ao primeiro ano do site, Michely Ribeiro, conselheira nacional de saúde pela Rede Lai Lai Apejo - População Negra e AIDS, enfatiza que o SUS é um patrimônio do povo brasileiro e “o debate da saúde pública precisa ser reconhecido por cada cidadão e cidadã como algo seu, do qual ele faz parte, do qual ela faz uso, e que acolha essas pessoas como as mais importantes dentro do Sistema”.

Para Michely, é importante considerar as demandas das populações, a diversidade dos cidadãos e seus modos de vida na garantia e no acesso ao direito à saúde e ela ainda destaca na entrevista pautas importantes para a 15ª Conferência Nacional de Saúde, que acontece em dezembro deste ano, em Brasília, a começar pela ampliação das vozes dos usuários do SUS neste espaço.

A conselheira também fala a seguir dos desafios para efetivação do SUS, como a necessidade de a participação social ser ampliada para além dos conselhos de saúde. Entre as propostas que apresenta para superar esses entraves está uma revisão nas dinâmicas de controle social, sugerindo que as conferências de saúde, por exemplo, sejam levadas até às pessoas em geral. 

 

PenseSUS: Quais são os principais desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS)?

Michely Ribeiro: Dentre os principais desafios para a efetivação do SUS, evidencio a necessidade de que o Sistema esteja diretamente atendendo às demandas da população. Nesse sentido, ter qualidade de atendimento na Atenção Básica mostra-se um grande desafio, principalmente na estratégia de Saúde da Família e no Programa de Agentes Comunitárias/os de Saúde. Há a necessidade de pensar a gestão do SUS e identificar prioridades que sejam pautadas também pelos determinantes sociais em saúde e que possibilitem, além da análise epidemiológica e do quadro das doenças, incidir com maior eficácia na causa das doenças e na compreensão da saúde em seu sentido amplo, pela garantia do bem-estar da população. Isso não pode ser pensado sem que o subfinanciamento do SUS seja vencido. Há a necessidade de que o financiamento da saúde pública tenha expressão suficiente para as demandas da efetivação do direito à saúde. E nada disso se faz sem que profissionais de saúde estejam em educação permanente para cuidar bem da população brasileira e que tenham condições de ofertar seu melhor trabalho. Esses desafios devem ser enfrentados e desenhados juntamente com a população. Sendo assim, não há superação desses desafios sem que haja ampliação da participação e exercício do controle social, que extrapole os conselhos de saúde. É preciso que a população compreenda seu papel na melhoria e garantia do SUS. E que o Sistema atenda a todas e todos, como um patrimônio do povo brasileiro, reconhecendo a multiplicidade dessas populações que vivem, interagem e compreendem, de modos diferentes, a saúde e que precisam que o cuidado esteja em concordância com seus modos de vida.

Como garantir a preservação e o aprimoramento do SUS como sistema público de saúde?

Sem sombra de dúvida, é preciso ampliar efetivamente a participação das pessoas no processo de monitoramento e controle social da saúde, para além das conferências e conselhos de saúde. O debate da saúde pública precisa ser reconhecido por cada cidadão e cidadã como algo seu, do qual ele faz parte, do qual ela faz uso, e que acolha essas pessoas como as mais importantes dentro do Sistema. Por essa razão, é preciso qualificar o atendimento direto ao usuário do SUS, no que tange à oferta de serviços (medicamentos, atividades preventivas etc.), e desburocratizar a participação nas instâncias de controle social, assim como dinamizar as mesmas. As reuniões dos conselhos locais precisam sair de dentro das Unidades Básicas de Saúde e acontecer nas associações de moradores, nas casas das pessoas, nos campinhos de futebol, para que a comunidade como um todo veja, saiba e acesse quem são seus representantes e entenda o papel de cada pessoa nesse processo de monitoramento da política de saúde. Não são as pessoas que devem ir à conferência para ampliar a participação, mas sim a conferência que deve ir até as pessoas, por exemplo. Isso não garante a preservação do sistema público de saúde, mas faz com que tenhamos mais pessoas defendendo o SUS que se torna real, e não o SUS abstrato constitucional.

Como colocar efetivamente a saúde na agenda de desenvolvimento econômico e social do país?

Nessa última década, esteve vigente, de forma tímida, a inserção do debate em torno do que fazer para impulsionar o desenvolvimento econômico, atrelando-o ao desenvolvimento social. Objetivamente, ainda que ignoradas, as estratégias que se pautam na necessidade de estabelecer prioridade para as populações historicamente negligenciadas garantem o desenvolvimento social e tais investimentos dão diretamente resultados econômicos. 

É preciso divulgar e contabilizar os gastos em saúde devido à ausência de garantia de direitos humanos. Por exemplo, quanto se gasta em programas de hipertensão e diabetes, devido a uma alimentação irregular e pouco nutritiva da população e à ausência de exercícios físicos, enquanto se investe em produção de alimentos transgênicos? Qual é o impacto do não enfrentamento da violência contra a mulher e quais são os gastos da saúde pública com internamentos e tratamentos psicológicos para as próprias mulheres, filhos e filhas? Qual é o impacto da negação a trabalho, moradia, alimentação adequada, educação, terra, lazer nos gastos com a saúde?

Os dados brutos evidenciam que, onde há as maiores violações de direitos humanos, encontramos os piores indicadores de saúde. Pessoas mais saudáveis conferem menos gastos aos cofres públicos em tratamentos prolongados. Além disso, faltam menos ao emprego, dão continuidade ao desenvolvimento de suas atividades e conseguem comprar alimentos que garantam o sustento de suas famílias, fazendo com que crianças e adolescentes não tenham que trabalhar cedo e garantindo seu espaço e direito a lazer e assim por diante, o que representa menos gastos com saúde pública.

Como exemplo direto tem o meu campo de atuação com mulheres negras: o programa de transferência de renda Bolsa Família está inserido em  uma proposta de desenvolvimento social. Das mais de 14 milhões de famílias beneficiadas, 93% são cadastradas por mulheres, sendo que dessas 73% são mulheres negras. A identificação e divulgação desses dados fizeram com que surgissem mais estratégias que beneficiassem mulheres, por exemplo, a abertura de crédito especial para elas. Essa ação movimenta significativamente a economia nacional.

Por essa razão, é preciso pensar quem são os atores sociais interessados em construir uma saúde pública de qualidade no Brasil e conferir novos investimentos para tais pessoas, visto que a saúde pública serve a um conjunto muito amplo da população, mas essas têm baixo poder de vocalização. Investir nessas pessoas significa conferir-lhes mais poder e, nesse sentido, demonstrar a importância da saúde para esse maior conjunto populacional e que a garantia de saúde para as pessoas impulsiona diretamente o desenvolvimento econômico, atrelado ao desenvolvimento social.

Como agregar outras representações ao debate sobre as políticas públicas de saúde?  E como essas políticas podem contribuir para redução das desigualdades sociais e para melhoria da qualidade de vida da população?

Precisamos disseminar a visão de que saúde não é ausência de doença e, principalmente, convencer as pessoas disso. Nesse sentido, é preciso estabelecer uma busca ativa com as diversas áreas que dialogam com a redução das desigualdades. A promoção da qualidade de vida das pessoas passa pelo atendimento, ou acesso aos direitos constitucionais. Sendo assim, temos que buscar e envolver (são duas coisas!) educação, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, assistência social, meio ambiente, justiça, cultura e lazer, agricultura e abastecimento, trabalho e geração de renda, igualdade racial, defesa de direitos das crianças e adolescentes, mulheres, idosos, pessoas com deficiência, jovens, povos e comunidades tradicionais. Devemos colocar em interação as diferentes áreas ou campos de atuação para efetivar a política pública de saúde, com vistas à redução das desigualdades sociais, e promover a qualidade de vida.

Quais temas não podem ficar de fora do debate para 15ª Conferência Nacional de Saúde?

Em um primeiro momento é a ampliação da voz dos usuários do SUS. Parece que esse não é um tema, mas é um dos mais importantes! Há que se pensar a regionalização do SUS e o processo de interiorização, não apenas do ponto de vista da gestão, mas de modo que tenhamos diferentes vozes ecoando, com mesmo potencial de vocalização que as demais. Também é preciso aplicar a equidade no processo de organização, participação e monitoramento das demandas elencadas na 15ª Conferência Nacional de Saúde. E é importante pensar como efetivar o direito humano à saúde, encontrar soluções diferentes para os mesmos problemas. É preciso ser mais criativo e aprofundar mais a compreensão do problema e produzir soluções necessárias e eficazes.
Também é preciso debater acesso, financiamento, qualificação profissional (educação permanente) e principalmente melhorar a comunicação do SUS que não seja apenas propaganda do que a gestão faz.

Como tornar as propostas decorrentes da conferência mais efetivas, contribuições para política nacional de saúde e para o SUS nos próximos anos?

Devemos manter o foco no controle social posterior ao acontecimento da conferência, no que está sendo chamado de quarta etapa da 15ª Conferência Nacional de Saúde, fazendo reverberar as deliberações da mesma no processo de construção do Plano Nacional de Saúde. Fazer com o que o relatório chegue com qualidade e em linguagem adequada e acessível a todas as populações que usam o SUS e oportunizar que as pessoas, e não apenas instituições, sintam-se responsáveis pelo processo de desenvolvimento da política de saúde pública.

O que é preciso para que as pessoas saibam mais sobre o SUS e seus direitos?

É preciso tornar a linguagem da saúde acessível, sobretudo para aquelas pessoas que majoritariamente utilizam os serviços do SUS. De mesmo modo, é preciso encontrar novas maneiras de envolver a comunidade no processo de tomada de decisão e direcionamento da política de saúde por mecanismos menos burocratizados.

O PenseSUS acaba de completar um um ano. Como pode contribuir mais a defesa do direito à saúde?

O PenseSUS já é uma plataforma que visa estabelecer novas maneiras de comunicação em saúde, creio que seja necessário que os debates sérios que são travados e temas apresentados no site tenham linguagens diferentes para dialogar com as diferentes populações.