Formação para o SUS: prioridades e desafios


25/04/2014
Por Clarisse Castro (Icict/Fiocruz)


A formação profissional em saúde no Brasil foi tema de encontro promovido pelo Centro de Estudos da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ceensp/Fiocruz) em março. Aberto ao público, o evento teve como palestrantes o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, o professor da Universidade Federal da Bahia e atual reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia, Naomar de Almeida Filho, e o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Ruben Araújo de Mattos.

Um dos principais temas do debate sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) na atualidade, especialmente a partir da criação do Programa Mais Médicos, a formação na área da saúde tem mobilizado discussões na academia, em congressos e movimentos sociais. Mas essa discussão não é uma novidade, segundo o diretor da Ensp, Hermano Castro. O que mudou foi a perspectiva, que enfrenta cada vez mais o desafio de conceber recursos humanos com base no princípio da integralidade, e não mais fundamentados pelo modelo hegemônico de formação. “Desde os anos 1970, estamos discutindo formação universitária, e agora estamos de fato nos perguntando que profissional queremos. Ao mesmo tempo em que a saúde pública é um mercado que cresceu muito, há ainda bastante necessidade de assistência”, afirma Castro.

 

Estado: produtor de desigualdades? 

Naomar de Almeida Filho traçou um panorama entre os impasses e perspectivas da formação em saúde no Brasil e afirmou: “o Estado produz desigualdades sociais que não se corrigem com políticas de assistência”. Na opinião do reitor, existe uma estrutura de perversão social no Brasil que é muito semelhante na educação e na saúde, pois ambos são direitos que não são garantidos plenamente no país.

“Uma minoria social tem todos os incentivos, de muitas ordens, especialmente fiscais. O acesso aos serviços ofertados por órgãos privados na saúde, ainda de melhor qualidade, têm forte renúncia tributária, o que só é possível porque a maioria pobre financia o Estado através do consumo de bens e serviços considerados essenciais”, declarou Almeida.

Ele apresentou ainda o processo de efetivação do Projeto de Colégios Universitários, em implementação sob sua coordenação na Universidade Federal do Sul da Bahia, onde assumiu a função de reitor no final do ano passado. Pensado pela primeira vez na década de 1960 e suprimido pela ditadura militar, o modelo tem o objetivo de formar bacharéis e licenciados em áreas interdisciplinares. De acordo com o projeto, na primeira fase do curso, geralmente desenvolvida em dois anos, os alunos podem formar seu percurso acadêmico escolhendo apenas uma grande área de atuação. Somente após esse período, já apropriado de suas potencialidades, é que os estudantes optam por alguma área profissional específica.

 

Formação ou deformação?

Para Ruben Araújo de Mattos, professor e pesquisador da Uerj,  pensar na formação para o SUS pressupõe pensar no quadro de atuação já estabelecido na área de saúde pública. “Quem sustenta o SUS hoje, infelizmente, não é um conjunto de trabalhadores organizados. A mão de obra que trabalha no SUS também trabalha no serviço privado. Então, como se convence o trabalhador a trabalhar para o SUS? Esse é um problema político estratégico. Ou mudamos a ponta, transformando as práticas profissionais onde elas acontecem, de forma que se construa uma ideia de que vale a pena dedicar o trabalho ao SUS, ou esse dilema dos recursos humanos vai permanecer”.

Além da desigualdade no ingresso, outro problema que incide sobre a formação, na opinião de Mattos, tem origem na própria constituição dos valores sociais atuais: é a dificuldade de enxergar o outro, em suas semelhanças e também em suas diferenças de contexto social, político, cultural e acadêmico. Quadro que não estaria ocorrendo apenas no SUS, mas em toda a sociedade, alimentado pelo individualismo, pelo consumismo e pelos processos de formação empregados ao lidar com o outro como um produto ou instrumento para algum tipo de benefício pontual.  

“Eu quase desisti de concluir Medicina no quinto semestre por conta de uma aula de neurologia onde o professor usou um adolescente indígena, cuja família havia procurado o hospital universitário porque ele apresentava uma dificuldade de começar a se locomover, o colocando no centro da roda e o empurrando para frente, para que a gente observasse a questão. Eu vi o pavor nos olhos daquele menino e entendi que aquilo não era formação de profissionais, mas deformação.” 

Neste sentido, para Mattos é impossível traçar uma única estratégia de enfrentamento dos problemas da formação. As maiores dificuldades a serem enfrentadas hoje consistem na tentativa de construir espaços de formação que coloquem profissionais para tomarem decisões em conjunto. “Por que as residências nas especialidades médicas só são feitas para médicos? E por que as residências de outras áreas não convidam médicos para participarem de suas formações?”, questiona Mattos.

 

Mais Médicos e o desafio dos próximos passos

Para o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, o Programa Mais Médicos representa uma estratégia do Governo Federal para reduzir o déficit de recursos humanos que ocorre não apenas no Brasil, mas em todo o mundo e que hoje gira em torno de 7,2 milhões de profissionais de saúde. “Há no país, hoje, mais de 1900 municípios com menos de 1 médico para 3 mil habitantes na atenção básica e o Governo Federal está buscando enfrentar isso com este programa”, esclarece.  

Gadelha lembrou o Artigo 200 da Constituição Federal, que estabelece a competência e a responsabilidade do SUS de ordenar a formação de recursos humanos no Brasil e demonstrou alguns espaços de discussão nos quais a Fiocruz tem atuado, entre eles a Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde e a Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família.