SUS, população negra e racismo: para promover saúde é preciso reconhecer e eliminar o preconceito

Simpósio Internacional de Saúde da População Negra. Foto: Marcelo Camargo

02/12/2016
Por Clarisse Castro (PenseSUS)


 

Em novembro, duas datas têm significativa importância para a reflexão no campo da saúde, e, particularmente, nas políticas públicas estruturadas no Sistema Único de Saúde (SUS): o Dia Nacional da Consciência Negra (20) e o Dia Internacional da Não Violência Contra as Mulheres (25). Para denunciar uma co-relação perversa entre os dois temas – pessoas negras e mulheres em situação de violência - o Instituto da Mulher Negra Geledés e a Organização de Mulheres Negras Criola lançaram em setembro o dossiê "A situação dos Direitos Humanos das mulheres negras no Brasil – violências e violações". O documento foi apresentado na 157ª sessão da Comissão da Organização dos Estados Americanos (OEA), que aconteceu em outubro. É uma coletânea de informações de qualidade que delineia o que tem se tornado uma luta dos movimentos sociais: o racismo faz mal à vida, e à saúde que é parte inerente dela.

 
“O Dossiê é um retrato em preto e branco, sem retoque, da violência que as mulheres negras vivenciam cotidianamente, ocultadas pela cumplicidade do racismo patriarcal heteronormativo e institucional. Da violência praticada contra nossos corpos, nosso pensar, nosso existir. Seu objetivo é desassossegar, incomodar, fazer pensar e agir”, dizem as coordenadoras do documento, Jurema Werneck e Nilza Iraci.

Em 2014, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que os negros (pretos e pardos) eram a maioria da população do país em 2014, representando 53,6% dos brasileiros. Quando o recorte se faz pelo sexo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calculou que em 2013 as mulheres negras já representavam 51,8% do total da população do país – algo em torno de 59 milhões de pessoas. Essa porcentagem, contudo, varia de acordo com as regiões brasileiras. No Nordeste, 70,7% das mulheres são pretas. No Sul, essa prevalência cai para 21,3%. Em 2011, também segundo o Ipea, apenas 26,3% das mulheres negras brasileiras possuíam níveis de renda médios ou altos: residindo em regiões com menos água encanada, menos esgotamento sanitário, menos coleta regular de lixo, menos acesso à alimentação, à escola, aos serviços de saúde... Chefiando famílias através de ocupação majoritariamente doméstica, emprestando cuidado às casas e aos filhos dos outros, e ganhando menos – em torno de 86% dos rendimentos de mulheres brancas que exercem as mesmas funções. Em quase todas as regiões brasileiras (o Sul é a exceção), as negras foram as principais vítimas dos assassinatos de mulheres entre 2011 e 2013: 87% na Região Nordeste, 81% na Região Norte, 71% na Região Centro-Oeste, 55% na Região Sudeste e 18% na Região Sul.

Mas ser preta, segundo o dossiê, também é ser minoria. Considerando posições de decisão em organismos públicos e privados, mulheres pretas eram apenas 1% do total de ocupantes do Congresso Nacional em 2014 e 0,5% em cargos de direção das 500 maiores empresas presentes no Brasil em 2010. Como apenas nas últimas eleições o Congresso passou a coletar dados sobre a raça/cor dos candidatos, numa primeira apuração por eles realizada foi possível verificar que, entre os 567 parlamentares, apenas 45 são negros, e desses somente seis são mulheres. E são minorias nas estatísticas oficiais, porque a notificação dos casos de violência que as atingem é continuamente negligenciada. Tomando como exemplo a população LGBT, 118 pessoas trans foram assassinadas no Brasil entre 1º de outubro de 2014 e 30 de setembro de 2015, e organizações civis afirmam que a maioria era de mulheres negras, embora a subnotificação ou a notificação incompleta não permitam a apresentação de um número exato.

 

Racismo faz mal à saúde

Um dos principais aspectos apresentados pelo dossiê publicado pelo Geledés e Criola foi justamente sobre o racismo incidindo sobre a saúde das mulheres negras. Embora exista, há dez anos, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSPP), proposta pelo Conselho Nacional de Saúde, ainda prescinde de mecanismos que mapeiem e incluam o racismo como um determinante para os agravos na saúde. Em 2014, o Ministério da Saúde reconheceu essa assertiva, mas as políticas de atenção ainda são racistas. O dentista e coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), José Marmo da Silva, explica que o racismo dificulta o acolhimento das pessoas negras no Sistema Único de Saúde (SUS), muitas vezes sem que os profissionais de saúde percebam suas atitudes racistas. 

“Um bom exemplo do que estamos falando pode ser visualizado nos estudo ‘Desigualdade de transplantes de órgãos no Brasil: análise do perfil dos receptores por sexo e raça ou cor (2011)’, realizado pelo Ipea, que apresenta o seguinte resultado em relação ao transplante de coração: a maioria (56%) dos receptores é da cor branca. Este fato contraria as expectativas, na medida em que a maior proporção de mortalidade por doenças do aparelho circulatório é encontrada justamente na população preta, que recebe menos de 10% dos órgãos transplantados”, diz Marmo.

O dossiê "A situação dos Direitos Humanos das mulheres negras no Brasil" aponta também que 62% das mulheres que morrem durante os processos de parto são negras. E do total de mulheres negras gestantes, apenas 55% realizam as sete consultas de pré-natal recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e providas pela Rede Cegonha, a política que estrutura a assistência às gestantes e bebês no SUS. As mulheres negras são uma população em vulnerabilidade quando se trata também de doenças como HIV/Aids, hipertensão arterial e diabetes. “Já temos dados suficientes mostrando essa situação de desigualdade, mas não temos ações que considerem essas informações para a tomada de decisão em relação à saúde da população negra no SUS. Resta a pergunta: por que não tomam a decisão?”, expressa Marmo.

 

Estereótipos e invisibilidades

Em debate realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), em 22 de novembro, para marcar o Dia Nacional da Consciência Negra, a vereadora recém-eleita no Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) mencionou o estereótipo como grande atenuante da prevalência e da naturalização do racismo na saúde. “Infelizmente nós, mulheres negras, já ouvimos muito que temos um quadril largo e que podemos sentir um pouco mais de dor, que não necessitamos de analgesia. A mulher negra está mais vulnerável à violência obstétrica”, diz. Rafaela Santos, jovem negra de 15 anos, faleceu em 2015 enquanto aguardava assistência para o nascimento de seu bebê em um hospital público do Rio de Janeiro.  Ela teve eclampsia, ruptura do útero, hemorragia, aspirou vômito, foi transferida em estado grave para um hospital de maior porte, onde faleceu horas depois. Este é um dentre os vários casos que ilustram a afirmação de Marielle.

O racismo é estrutural e provoca também invisibilidade. Segundo o Dossiê ‘A situação dos Direitos Humanos das mulheres negras no Brasil’, somente em 2012, 56 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, das quais 30 mil eram jovens com idades entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% eram pessoas negras. Embora a maior parte dos homicídios seja praticada por armas de fogo, menos de 8% dos casos chegam a ser julgados. “Por trás destes números há também a violência não letal, mas intensa e continuada, que afeta milhares de mulheres negras, em sua maioria mães dos e das jovens assassinados. Estas violências são vividas tanto nos intensos esforços que desenvolvem, geralmente em isolamento e solidão, para proteger e tentar preservar a vida de seus jovens, mas também após a morte destes, ao longo de suas ações para recuperar a dignidade dos jovens assassinados, para recuperar e enterrar seus corpos, para buscar reparação e justiça”, aponta o documento.

 

Movimentos sociais se organizam a favor da saúde da população negra

Apesar do cenário cercado de dor e injustiça, diversas iniciativas apontam, ou tentam apontar, uma luz no enfrentamento do racismo. E elas quase sempre envolvem movimentos sociais organizados. Nos dias 15 a 17 de novembro, por exemplo, aconteceu em Porto Alegre o primeiro Simpósio Internacional de Saúde da População Negra, com o tema “Negritude e Bem Viver: equidade racial no SUS é pra valer!”.  O Simpósio teve como objetivo fortalecer a implementação da PNSPP, misturar saberes e promover diálogos entre profissionais de serviço, conselheiros de saúde, Academia, gestão do SUS e a sociedade civil organizada. Lúcia Xavier, consultora da organização Criola, destaca a importância do evento ter ocorrido agora, às vésperas da votação da PEC 55 no Senado. “Justamente num momento de retrocesso da democracia e das políticas públicas, especialmente no campo da saúde, a programação trouxe à tona as iniquidades e as possibilidades de enfrentamento do racismo institucional nesse campo, através de relatos de experiências, apresentação de estudos e pesquisas, e das ações desenvolvidas por organizações da sociedade civil e movimentos sociais”, diz.

Lúcia também destaca que a presença massiva de organizações não-governamentais como Renafro, Criola, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), Associação Cultural de Mulheres Negras (ACMUN), dentre outras no Simpósio proporcionou uma avaliação das lutas e a proposição de novas estratégias de enfrentamento ao racismo. “A presença da juventude, especialmente do grupo de médicos e estudantes de medicina negros, chamado Negrex, mostrou a força dos jovens na defesa do SUS, sem racismo e com equidade. Elas e eles fizeram a diferença em várias salas de apresentação de trabalho”, conclui.