A mulher na Saúde: visões de cinco pesquisadoras


08/03/2015
Fonte: Abrasco (por Bruno C. Dias)


Apesar do gênero gramatical, palavras como coragem, determinação, força e luta são vinculadas automaticamente ao mundo dos homens, enquanto outras, como sensibilidade, compreensão, cuidado e afeto são enquadradas no universo feminino. Mas será isso mesmo? Neste 08 de março, Dia Internacional da Mulher, a Abrasco perguntou a cinco pesquisadoras associadas quais sentidos, abordagens e desafios as mulheres vivenciam dentro do campo, buscando compor um painel que abarque do protagonismo feminino no setor ao atual estado das investigações sobre a mulher na esfera da Saúde Coletiva. Um desafio e tanto que não pretende ser nenhuma avaliação ou conclusão tida como encerrada. Muito pelo contrário, quer apenas iniciar a conversa e convidar todas as pessoas – mulheres e homens - para o debate.

Força feminina, direção masculina: A primeira constatação repercutida pelas entrevistadas é conhecida de todos que atuam na área. As mulheres são a principal força de trabalho da saúde. Representam 65% dos mais de 6 milhões de profissionais ocupados no macrossetor, tanto nas atividades diretas de assistência em hospitais, prontos-socorros, consultórios, clínicas, CAPS e demais espaços, quanto nas atividades indiretas, como produção e comercialização de produtos, equipamentos e fármacos, ensino e pesquisa, e saneamento básico. No total, são 3.9 milhões de mulheres. Em algumas carreiras, como Fonoaudiologia, Nutrição e Serviço Social, elas alcançam quase a totalidade, ultrapassando 90% de participação. Em outras, como Enfermagem e suas ramificações (graduadas, técnicas e auxiliares, incluindo a Saúde Bucal) e Psicologia, estão quase lá, com percentuais acima de 80%. Os dados têm como base o Censo do IBGE e foram compilados pela Estação de Pesquisa de Sinais de Mercado, do Núcleo de Educação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Minas Gerais (EPSM/ NESCON/UFMG) .

“Silenciosa e quase imperceptivelmente, as mulheres tecem uma imensa rede de solidariedade que acolhe diariamente milhões de brasileiros, justamente nos momentos delicados de grande fragilidade e sofrimento. No entanto, encontram-se distanciadas em sua maioria dos cargos de chefia e na condução das políticas de saúde”, destaca Eli Iola Gurgel, integrante do NESCON, professora da Faculdade de Medicina da UFMG e vice-presidente da Abrasco.

Um dos motivos dessa velha e persistente desigualdade pode ser inferido a partir dos dados da mesma pesquisa. Das 14 profissões regulamentadas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), as únicas que apresentam maior presença masculina são Medicina (56,7%) e Medicina Veterinária (55%), justamente as de maior prestígio social e retorno financeiro.

Enquanto isso, na ciência: No interior da academia, o cenário não é diferente. Levantamento do programa Mulher e Ciência, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq/MCTI), aponta que dentro da política de bolsas da Agência, a participação das mulheres diminui à medida em que se avança na carreira científica. Enquanto as mulheres bolsistas de iniciação científica representam 56% do universo total de auxílios concedidos pelo CNPq, a participação feminina cai para 36% quando listadas somente as pesquisadoras bolsistas de Produtividade em Pesquisa (PQ), modalidade esta considerada pela academia como critério de excelência. No ano do levantamento, 8.994 bolsas PQ foram concedidas a pesquisadores do sexo masculino, enquanto 4.970 auxílios foram destinados a pesquisadoras do sexo feminino, quantidade próxima à metade. Além disso, o ingresso da mulher no sistema de bolsas PQ, de modo geral, é mais tardio. Enquanto a maioria de bolsas PQ do sexo masculino é concedida a homens de 45 a 54 anos, o patamar de maior freqüência de bolsas para as mulheres, nessa mesma modalidade, situa-se dos 50 aos 59 anos. Os dados são de 20013 e foram divulgados ano passado. 

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“Em uma área visivelmente feminina como a saúde, especialmente a Saúde Coletiva, os homens ainda são os mais destacados cientistas e ocupam a maioria  das posições de direção nas instituições de pesquisa e ensino”, reforça Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) e integrante do Conselho da Abrasco. No entanto, Lígia percebe que são poucas as vozes que se levantam para denunciar a disparidade. “É frequente as cientistas brasileiras deporem contra a existência de preconceito e discriminação e os homens pesquisadores apontarem a presença feminina, inclusive em seus grupos de trabalho. Mas são ‘amostras’ compostas por um ‘universo pessoal’, sem qualquer representatividade. Nada menos científico”, conclui Lígia.

Corpo sob tutela: No campo da assistência e do cuidado à saúde, por séculos imperou a lógica de dominação, segregação e submissão imposta às mulheres pela sociedade, baseada no poder físico, tutelador e econômico dos homens e das instituições em todas as áreas do conhecimento e das práticas da vida cotidiana. Segundo Simone G. Diniz, professora do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), membro do Grupo de Trabalho Saúde e Gênero da Abrasco e representante da Associação no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), o cenário começou a mudar, mesmo que lentamente, no século XX. “A chamada segunda onda do feminismo abalou as práticas de assistência em saúde da mulher, questionando o conhecimento sexista, voltado para promover a subordinação das mulheres ao papel de mãe abnegada e esposa obediente e calma, através da medicalização intensiva dos processos fisiológicos femininos. A legalização do aborto e da contracepção, o questionamento da segurança das opções médicas e cirúrgicas de tratamentos, e a exigência de relações menos autoritárias foram resultados destas lutas.”

A pesquisadora destaca que, no Brasil, o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM, 1983) refletiu parte desse movimento e buscou apontar também para a equidade e a universalidade na assistência. Porém, a tutela das políticas públicas por setores conservadores, sejam eles religiosos e/ou profissionais, sempre entravou sua efetivação. “Atualmente, as políticas são focadas na área materno-infantil, tendo como carro-chefe a Rede Cegonha. É visível o desinvestimento em outros temas e pautas, mesmo os garantidos por lei”, completa Simone.

No início do século atual, percebe-se uma oxigenação dessas questões, com maior discussão de pautas como a humanização da assistência ao parto nos movimentos sociais e na sociedade civil. Maria do Carmo Leal, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e editora associada da Revista Brasileira de Epidemiologia (RBE), da Abrasco, coordenou o inquérito Nascer no Brasil, que entrevistou quase 24 mil mulheres no período de fevereiro de 2011 a outubro de 2012. O estudo amplificou na academia, nos serviços, no Ministério da Saúde e na imprensa a discussão sobre a importância do parto normal e explicitou o abusivo número de cesáreas realizadas, principalmente, nos hospitais e maternidades vinculados à saúde suplementar.

“Desde que o parto, no Brasil, migrou do ambiente domiciliar para o hospitalar, as mulheres  perderam o protagonismo sobre essa espetacular experiência humana de parir e a transferiram para os profissionais de saúde. Com essa perda, ocorreu uma privação, para as mulheres e seus filhos, da oportunidade de vivenciarem naturalmente o processo da parturição e estabelecerem precocemente um encontro de amor e reconhecimento mútuo”, sentetiza Maria do Carmo, ressaltando a defesa do procedimento padrão do parto normal como uma retomada da autonomia da mulher em todos os domínios da vida cotidiana.

Para além da mulher, o feminino: A vida cotidiana tem sido o principal campo de batalha das mulheres. Pressionadas pelas exigências objetivas e subjetivas do capitalismo, com forte cobrança por performance e reconhecimento como profissionais, acadêmicas, parceiras e mães, o embrutecimento e a adoção de valores tidos historicamente como masculinos têm posto em xeque, no tecido social, valores outrora de seu domínio. Isso tem trazido reflexos em todos os campos, e não seria diferente na Saúde Coletiva.

Para Rosana Onocko-Campos, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM/Unicamp) e também integrante do Conselho da Abrasco, a Saúde Coletiva tornou-se um campo competitivo, fragmentado e fálico. A alternativa, para ela, é deixar de lado os dogmas impostos pela sociedade machista e capitalista e reencontrar – tanto homens como mulheres – com os valores do feminino. “Para Freud, o acesso ao feminino em cada um de nós era a chave da cura da neurose. Tentando resumir muito, curar-se significaria sair do lengalenga da repetição e da queixa e responsabilizar-se pelos próprios sintomas e desejos. Um mundo mais feminino poderia ser mais acolhedor e menos competitivo, sem perder por isso sua força e contundência, estando assim mais preocupado com a reprodução da vida e da cultura, e não só com a correria fragmentada do nosso dia a dia para chegar primeiro”, reforça Rosana.

Entre tantas visões e abordagens, as 'abrasquianas' ouvidas foram unânimes em destacar, antes de tudo, que o 08 de março é um marco de luta e um resgate histórico que perdura no tempo e se mantém vivo nos corredores de hospitais, policlínicas, universidades, centros de pesquisa e demais espaços da sociedade. Uma luta que dispensa flores, descontos em lojas e mimos cor-de-rosa e afirma a importância da mulher como ser humano autônomo, independente e consciente do seu valor na sociedade contemporânea, conjugando força com afeto, coragem com compreensão. A todas às mulheres, parabéns por suas trajetórias de vida.