O SUS e a gestão pública no Brasil


20/04/2015
Fonte: Saúde Amanhã (por Bel Levy)


Os crescentes movimentos de privatização e mercantilização da Saúde trarão efeitos perversos sobre o acesso e a equidade do Sistema Único de Saúde (SUS). A avaliação é do cientista político Ricardo Carneiro, pesquisador da Fundação João Pinheiro (FJP), em Minas Gerais, e colaborador do projeto Brasil Saúde Amanhã. Carneiro dedica-se ao estudo da Administração Pública e, junto à  Flávia de Paula Duque Brasil, também pesquisadora  da FJP, assina o capítulo “Gestão Pública no Brasil do Século XXI: Tendências Reformistas e o Desafio da Profissionalização”, que será publicado no livro “Brasil Saúde Amanhã: População, Economia e Gestão”, com lançamento pela Editora Fiocruz previsto para o segundo semestre de 2015. Nesta entrevista, ele comenta o fortalecimento da agenda neoliberal no Brasil e os seus impactos, em médio e longo prazo, para a gestão pública do país e o SUS.

Qual a relevância de estudos de prospecção estratégica de futuro, como o projeto Brasil Saúde Amanhã, para o aprimoramento da gestão pública no país?

Toda atividade que produz conhecimento direcionado ao planejamento e à execução de políticas públicas é fundamental, sobretudo quando se amplia o olhar ao futuro. O Brasil é um país imediatista, que toma decisões importantes em curto prazo, muitas vezes sem o planejamento prévio adequado. E neste processo surgem soluções improvisadas, que certamente não são as melhores. Por isso, alargar o horizonte temporal de nossas análises é um exercício essencial para aprimorar a gestão pública no país. Por meio do projeto Brasil Saúde Amanhã, a Fiocruz traz uma contribuição inédita neste sentido. No âmbito da gestão pública, prospectar o futuro significa pensar tendências, colocando ênfase em aspectos que apresentam características mais estruturais ; significa olhar à frente a partir de uma perspectiva histórica. Levamos em conta, também, as tendências do cenário global, pois observamos similaridades entre o que acontece no Brasil e no mundo. Assim, podemos inferir situações-limite e nos preparar melhor para enfrentá-las.

Do ponto de vista da gestão pública, quais as tendências para a regionalização do SUS, no horizonte dos próximos 20 anos?

Uma das tendências mais fortes para a gestão pública no Brasil, que vem no lastro da Constituição Federal de 1988, é a descentralização. E o ganho que ela potencializa é a possibilidade de adoção de  soluções não padronizadas, que reflitam as nuances e especificidades das  condições concretas de vida da população brasileira e contemplem toda a diversidade e heterogeneidade de cada território do país.  Isso é de extrema importância no Brasil, que é tão desigual.

A regionalização, portanto, deve ser pensada e incorporada em articulação com a descentralização, de forma a buscar soluções que sejam mais efetivas no atendimento às tão distintas características da realidade  brasileira.

Essa premissa vale para todo tipo de política pública no Brasil. Na Saúde, especificamente, podemos perceber com clareza os diferentes níveis de capacidade instalada e acesso que coexistem no país e como os diferentes entes federativos lidam com a Saúde. Para ser efetiva e gerar os resultados esperados na ampliação do acesso da população aos serviços de saúde, a regionalização pressupõe um nível de infraestrutura e de mão de obra especializada. Isto ainda precisa ser construído no Brasil, na linha do esforço que o programa Mais Médicos expressa .

O fortalecimento do pacto federativo é outro desafio que precisa ser superado pela gestão pública da Saúde. Trata-se de um esforço que exige o envolvimento  de todas as esferas de governo, sobretudo a União. Este movimento passa pela descentralização do planejamento e pela descentralização da execução dos serviços públicos. E isso não se resolve simplesmente com aportes financeiros. É claro que a transferência intergovernamental de recursos é fundamental, mas devemos avançar para além disso. É preciso encontrar formas de apoio mais efetivo para os Estados e municípios e, também, acompanhar mais de perto o desenvolvimento de políticas públicas locais, para que possamos garantir um padrão mínimo de qualidade aos serviços públicos prestados à população. Esta seria uma estratégia a ser articulada entre as diferentes unidades federativas. É indispensável, neste sentido, o apoio do Governo Federal à descentralização e à regionalização das políticas públicas e dos serviços prestados pelo Estado à população, como a Saúde. Isto é fundamental, pois a União detém a capacidade efetiva de mobilizar recursos financeiros e humanos. Reconhecemos que a fase de ajuste fiscal não é um bom momento para a Saúde nem para o país.

Como o cenário de atual aprofundamento da agenda neoliberal no país compromete a gestão pública do SUS?

O momento de ajuste fiscal não é bom para a Saúde nem para o país. Ainda que em circunstâncias de retração econômica a tendência seja cortar recursos de todos os setores do país, é fundamental que se preservem ao máximo as políticas sociais e de Saúde. No entanto, algumas medidas recentes têm indicado o avanço do país na direção oposta, no caminho da privatização e mercantilização da Saúde. Esta situação é um claro reconhecimento dos limites do poder púbico para regular o setor, frente ao poder do capital. Segundo a Constituição Federal, cabe ao Estado prover com qualidade e equidade o acesso da população a serviços públicos essenciais, como Saúde e Educação. No entanto, medidas como a abertura da Saúde ao capital estrangeiro apontam para uma situação em que a lógica de mercado – isto é, o lucro – prevalecerá. E com isso a equidade no acesso aos serviços de Saúde será fortemente comprometida. Claramente esta não é a melhor opção para o país. Este caminho não traz uma preocupação com o aprimoramento do SUS e, em médio e longo prazo, nos levará à deterioração do que já construímos até hoje.

É preciso observar e aprimorar a regulação das relações público-privadas na Saúde. Além da recente abertura do setor ao capital estrangeiro, o próprio setor público brasileiro tem cedido crescentemente à iniciativa privada – ou a soluções que se assemelham a esta via, como as Organizações Sociais de Saúde (OSS) e os cada vez mais frequentes processos de terceirização. Agora, com a aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto de lei que regulariza este tipo de relação laboral, assistiremos, certamente, à precarização ainda maior das relações de trabalho. Esta medida terá efeitos indiretos e muito expressivos para a Saúde, em médio e longo prazo. Provavelmente, todos esses arranjos políticos para incorporação do capital privado na Saúde trarão efeitos perversos no futuro, sobretudo no que diz respeito à qualidade do serviço prestado e ao acesso da população. Este é o caminho que vem sendo trilhado pelo Brasil e, em meu entendimento, não é um caminho adequado. É uma decisão muito ruim.

O que pode ser feito no presente para garantir, no futuro, a efetivação do SUS conforme previsto pela Constituição Federal?

O primeiro passo é levar a sério e efetivamente cumprir a Carta de 1988. E para isso é fundamental o envolvimento direto, o controle social e a participação societária. Quanto mais clareza a sociedade tiver sobre as políticas de saúde – não necessariamente o que a mídia mostra sobre a Saúde – melhores serão as possibilidades de qualificação do SUS. Por isso é importante que a população tenha consciência, de fato, sobre o que é o SUS, como são prestados os serviços públicos de saúde, como está organizada a rede de assistência e quais são os direitos do cidadão. Somente a partir desta compreensão a sociedade poderá efetivamente contribuir com a defesa e o aprimoramento do sistema de saúde pública - e não com a sua deterioração, como vem ocorrendo.

É preciso que a população compreenda amplamente o SUS, para que possa avaliar a opção dos serviços privados de saúde a partir do ponto de vista de um sistema de saúde público, universal, gratuito e de qualidade. E para isso é preciso que haja acesso, que as pessoas conheçam e utilizem os serviços públicos de saúde. Ao compreender e defender o SUS como uma prioridade para o país, a sociedade estará pressionando os três níveis de governo a atuar em prol do SUS. Nesse sentido, é fundamental o papel dos atores historicamente organizados na área da Saúde na defesa do SUS, ao lado da atuação de instituições comprometidas com a saúde pública, como a Fiocruz.  Não há uma saída para esta crise que não seja na direção de um efetivo Pacto pela Saúde.