PEC 241: sanitaristas lutam para reverter o golpe no SUS

PEC 241, menos recursos para o SUS. Imagem: Luciana Baptista

27/10/2016
Por Clarisse Castro (PenseSUS)


Enquanto iniciava a redação deste texto, a Câmara dos Deputados se preparava para realizar a segunda votação da Proposta de Emenda Constitucional 241, que pretende reajustar o regime fiscal brasileiro. A medida institui um teto para as despesas públicas governamentais, baseado na correção das despesas do ano anterior pela inflação do mesmo período. O objetivo, segundo o Governo Federal, é reduzir as dívidas pagas pelo Produto Interno Bruto ao longo dos próximos 20 anos – incluindo despesas com as áreas de Saúde e Educação.

Agora, aprovada no segundo turno de votação na Câmara com 359 votos a favor e 116 contra, a PEC 241 segue para a votação no Senado. A expectativa do governo é pela conclusão do processo e aprovação da proposta até a primeira quinzena de dezembro. Chamada de PEC do Teto para a o governo, ou de PEC da Morte para o movimento de esquerda, a medida divide opiniões.

O movimento sanitário brasileiro, que produziu as bases teóricas e ideológicas para a criação do Sistema Único de Saúde, vem se organizando em diferentes frentes para impedir que a medida seja aprovada. Segundo o Conselho Nacional de Saúde, se a PEC estivesse em vigor desde 2003, o SUS já teria deixado de receber mais de R$ 135 milhões em investimentos. Serão R$ 5,5 bilhões a menos já em 2017, com relação ao investimento de 2014, diz o CNS.

Já os representantes do poder executivo e os parlamentares favoráveis à medida insistem que as áreas de Saúde e Educação não serão afetadas pela medida porque em 2017 preservarão um patamar mínimo de investimento, de base constitucional – 18% da receita de impostos para a Educação e 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) para a Saúde. A partir de 2018 esse investimento seguirá a regra da PEC para as duas áreas, mas como a base será a arrecadação de 2017, quando o governo projeta um crescimento econômico melhor do que em 2016, diz-se que essas áreas preservarão um bom cenário.

Para explicar o funcionamento da medida, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) produziu em setembro deste ano uma nota técnica, na qual avaliou os impactos da proposta na área da saúde. Um dos principais pontos a serem compreendidos é que ao fixar o percentual mínimo com base em 2017, e regular pela inflação a partir dos anos seguintes, a PEC 241 desobriga os governos de alocarem mais recursos em saúde em contextos de crescimento econômico. Ou seja, haverá sim um engessamento do financiamento.

“O Novo Regime Fiscal visa reverter uma trajetória histórica de crescimento real do gasto público, o que implica uma ruptura dos acordos políticos e sociais relacionados com essa dinâmica. Portanto, a eventual aprovação e consequente implementação da PEC 241 não seriam processos isolados, provavelmente se ramificando em outras medidas igualmente estruturantes que afetariam compromissos já assumidos quanto à abrangência, princípios, cobertura e qualidade das políticas sociais”, diz a nota do Ipea.

A última regra em vigência, da Emenda Constitucional nº 86/2015 – que já havia estabelecido a destinação de 15% da RCL para a Saúde – não era o cenário desejado pelos sanitaristas, que defendiam a aplicação de 10% da Receita Corrente Bruta, através do Projeto de Lei de Iniciativa Popular Saúde Mais Dez, que foi rejeitado pela Câmara dos Deputados apesar de ter mais de dois milhões de assinaturas.

Para os pesquisadores do Ipea, autores da nota, a redução do financiamento do SUS afetará mais intensamente os grupos sociais mais vulneráveis. “Como o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, pode-se esperar efeito negativo da redução do financiamento público sobre a população mais pobre, que tem menos recursos para requerer, ainda que judicialmente, o acesso a bens e serviços de saúde”.

No dia 24 de outubro, a Plataforma Política Social e o Le Monde realizaram o Seminário O Golpe no SUS, no qual foram convidados os médicos sanitaristas Jairnilson Paim, Lígia Bahia e Gastão Wagner. Em suas falas, um sentimento comum: a urgência de mobilização da maior parte da sociedade contra a PEC 241.

Jairnilson Paim: “O golpe altera o DNA do SUS”

Para Jairnilson Paim, professor da Universidade Federal da Bahia, o golpe é parte de um processo que vem alterando o DNA do SUS. Como etapas, ele citou a abertura da assistência à saúde ao capital estrangeiro, pela Lei 13019/2014; a aprovação da PEC 451/2014, do então Deputado Federal e presidente da Câmara Eduardo Cunha; a Emenda Constitucional 86/2015; e agora a PEC 241, em processo de votação pelo Congresso.

“É uma bomba relógio. Se pensarmos na epidemia de diabetes que está por vir com essa juventude obesa no Brasil, na geração de crianças com síndrome neurológica decorrente da zika, nas doenças reumatológicas decorrentes da chicungunya, nos transtornos mentais e situações depressivas, enfim, no cenário epidemiológico dos próximos 20 anos, estamos perdidos. Nem uma projeção das mais pessimistas formulada até hoje por pesquisadores de saúde considerou o cenário que estamos vivendo”.

Paim não acredita que saúde e educação possam ser culpadas pelo crescimento dos gastos federais no Brasil, tampouco compartilha da ideia de que promover cortes nessas áreas possa ajudar a recuperar a economia do país. “Historicamente nosso gasto per capta com saúde é incomensuravelmente inferior a outros países, incluindo aqueles que não têm sistemas universais de saúde, como a Argentina. Mas o Governo Federal quer cortar da carne de quem? Só em 2015 acumulamos 25 bilhões de reais em renúncias fiscais, e enquanto isso, já estão faltando vacinas no SUS”, alerta.

Lígia Bahia: “O que estamos perdendo é um modo de interpretar o mundo e de intervir nele. Isso é o golpe”

Lígia Bahia, doutora em Saúde Coletiva pela Fiocruz e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, argumenta que o golpe vai muito além da perda de programas e políticas implantas. O maior desmonte, em sua opinião, é a perda da base técnica do SUS, duramente construída ao longo dos seus 30 anos de existência. Base que vinha promovendo, apesar de toda a pressão política, o uso racional dos recursos, a partir de critérios epidemiológicos, agora substituídos pela lógica dos acordos políticos.

“O que temos hoje no Ministério da Saúde é a lógica do butim. Temos um conjunto de partidos políticos que dividiram entre si as estratégias de apropriação dos recursos públicos. E isso é uma perda do SUS porque substituíram a racionalidade técnica pela prática de recompensa aos aliados. As decisões são orientadas pelos acordos com as bancadas parlamentares aliadas”. E completa: “O que estamos perdendo é um modo de interpretar o mundo e de intervir nele. Isso é o golpe”.

Para Lígia, é preciso retomar o pensamento e a atitude crítica diante deste cenário, recuperar essa base técnica, o que só ocorrerá com a união dos movimentos em defesa da garantia de direitos – da sociedade civil, da Academia, do campo do trabalho etc. Com agendas de pesquisas e ações que sejam ousadas. “O apoio em massa dos sanitaristas aos pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, que perderam seus cargos porque construíram um documento técnico contra a PEC 241 é um exemplo prático do que estou defendendo, de uma união em torno de um objetivo comum”. A retomada do hospital da Unimed no Rio de Janeiro para o SUS, após sua falência, foi outra sugestão usada como exemplo. “Tem viabilidade econômica e política essa ideia? Não tem. Mas precisamos retomar nossa capacidade de formulação de propostas. Nossa autonomia. Ou isso, ou vamos ficar acuados de vez”.

Gastão Wagner: “Estou apostando menos nos gestores. A esperança somos nós”

O presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e professor da Universidade Estadual de Campinas, Gastão Wagner, também defendeu a radicalização do movimento sanitário como via de enfrentamento ao golpe.

“Temos a oportunidade de ampliar o bloco político de trabalhadores e usuários, reunir todos os movimentos que estão aí, de diversos segmentos, com base nessa estratégia de dizer que o SUS é a solução. Vamos manter vivos os velhos, os diabéticos, os obesos, porque são seres humanos. Não interessa a produtividade. Não interessa se tem dinheiro para pagar, se não tem”.

Em sua percepção, os municípios tiveram um papel muito importante na implantação do SUS, sobretudo na década de 1990, mas o modelo de indução financeira – quando um Ministério da Saúde verticalmente define a execução de políticas pela destinação de recursos – não é suficiente para a complexidade do Sistema. A capacidade de gestão sobre a rede de saúde, por exemplo, é muito baixa porque muito fragmentada, e atravessada pela privatização.

“O SUS é muito dependente do poder executivo. Todos os cargos de gestão no SUS são de confiança. Chefes de Unidades Básicas de Saúde, coordenadores de serviços, todos. E a base técnica, o que fizemos para lhes dar estabilidade? Temos que trabalhar para melhorar a vida do trabalhador, pela carreira nacional no SUS, multiprofissional. Estou apostando menos nos gestores. A esperança somos nós”.