Pelo SUS, a defesa da democracia


23/03/2015
Fonte: Saúde Amanhã


"A questão central para o Brasil, hoje, é a defesa da democracia”. A afirmação é do pesquisador Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social – Caminhos  para o Desenvolvimento. Nesta entrevista, ele discorre sobre como o fortalecimento da agenda neoliberal impacta a gestão pública, o desenvolvimento social do país  e a implementação de um projeto nacional voltado para a cidadania. Ele reconhece que este quadro traz preocupações graves para a sobrevivência e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e, em relação ao que deve ser feito no presente para garantir o melhor futuro possível, é categórico: “É preciso cumprir a Constituição Federal”. 

Qual a importância de uma iniciativa como o projeto Saúde Amanhã, que investe na abordagem da prospecção estratégica do futuro como metodologia para a definição de políticas públicas de Saúde?

Eduardo Fagnani: O projeto Saúde Amanhã é importante para o pensamento estratégico nacional porque, além dos velhos problemas que temos, sobretudo do ponto de vista das desigualdades sociais, precisamos saber lidar com as novas questões que estão sendo colocadas pelo período de transição demográfica e epidemiológica que o Brasil atravessa – e que tem impactos em todos os setores, principalmente na Saúde e na Previdência Social.

Neste sentido, o livro “A Saúde no Brasil em 2030: Diretrizes para a Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro” – e toda a rede de conhecimento que se forma em torno do projeto – constitui-se como um instrumento muito valioso para o planejamento estratégico, pois aponta os cenários que poderemos enfrentar nos próximos 20 anos. E isso é fundamental para a definição de políticas públicas contundentes.

Com este exercício prospectivo do futuro sabemos, por exemplo, que enfrentaremos uma realidade demográfica diferente do presente, com pessoas mais velhas, com outras condições de saúde e outras necessidades de assistência. E tudo isso vai demandar ações específicas da Saúde Pública. Sabemos, também, que o setor privado não absorverá essa demanda, pelo contrário, irá expulsar as pessoas com mais de 60 anos – porque elas não dão lucro. E o que faremos com esses cidadãos? Serão deixados ao “Deus dará” na porta da rede privada? Precisaremos de um sistema de saúde pública universal, como o SUS. E, agora, temos 20 anos para nos planejarmos para esta realidade. 

Dessa forma, o projeto Saúde Amanhã reitera a necessidade de fortalecimento do SUS, de implementação de uma política pública universal de Saúde, que dê conta das demandas da população brasileira que já existem hoje e vão se intensificar no futuro e das novas necessidades que surgirão. Esta é a principal contribuição desta iniciativa: apontar essas transformações e sinalizar um conjunto de medidas e políticas públicas que deveriam ser adotadas a partir de agora.

Diante da atual conjuntura política e econômica do país, quais as suas perspectivas para o futuro do sistema de saúde brasileiro?

O quadro político atual indica que o cenário para o futuro do Brasil é de fortalecimento de grupos mais conservadores e aprofundamento da agenda neoliberal – o que é extremamente perigoso para a sobrevivência e desenvolvimento do SUS, conforme concebido pela Constituição Federal.

Da mesma forma, dependendo de como for realizado, o ajuste fiscal em curso atualmente poderá conduzir o país à recessão – e isso terá reflexos negativos sobre todos os setores, principalmente a Saúde. A elevação dos juros vai ampliar o endividamento do Estado, exigindo mais superávit fiscal – o que restringe o gasto social, o papel dos bancos públicos e, consequentemente, o investimento. Portanto, essas políticas de austeridade abrem um ciclo de desfinanciamento do Estado. Do ponto de vista financeiro, isso impõe limites concretos para a recuperação e implementação dos valores do SUS, tal qual eles estão descritos na Carta de 1988.

Para o SUS ser universal, equitativo e de qualidade, ele deve ser reconhecido como parte de um projeto nacional de desenvolvimento . Isto é imprescindível, porque o SUS de 1988 é resultado de um momento da História do Brasil – a redemocratização – em que as forças progressistas criaram um projeto de país inspirado nos valores do Estado de Bem Estar Social europeu. Quando este projeto nacional começou a ser gestado, em meados dos anos 1970, este Estado de Bem Estar Social ainda não havia sido contestado pelas forças neoliberais, como acontece hoje. Por isso, esses valores estão presentes no SUS e na Constituição Federal.

Porém, com o fortalecimento do neoliberalismo na década de 1990, surge, de fato, uma discrepância entre o que está na lei – na Constituição Federal – e a realidade política e econômica do país. E isso é muito simples de se constatar: segundo a Carta de 1988, o SUS é público e universal – se assim fosse na prática, deveríamos ter um esforço de investimento para ampliar sistematicamente a oferta de serviços públicos. No entanto, a agenda neoliberal de Estado mínimo, que já era hegemônica globalmente e tornou-se dominante no Brasil na década de 1990, é antagônica ao conceito de um sistema universal de saúde pública. Assim, o desenvolvimento social encontra-se interditado pelos interesses econômicos de determinados grupos, tanto do ponto de vista econômico quanto do político.

A partir da década de 1990, assistimos a diversas contramarchas na efetivação do SUS, a medida que o projeto de desenvolvimento nacional se afastava da Constituição Federal. Vivenciamos problemas gravíssimos em relação ao financiamento setorial, sobretudo quando os recursos da Seguridade Social deixaram de financiar o SUS, em 1993, e também com a extinção da CPMF, a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal, que impões um teto aos gastos com recursos humanos, e o surgimento das Organizações Sociais da Saúde (OSS), em 1997. Tudo isso amplia a mercantilização e privatização da Saúde e, ao mesmo tempo,  compromete a gestão pública do setor. Esse quadro vem se desenrolando desde a década de 1990, é bastante claro no presente e tende a se intensificar ainda mais no futuro.

De que maneira medidas tomadas no presente - como o orçamento impositivo para a Saúde e a abertura do setor ao capital estrangeiro - poderão repercutir sobre os princípios do SUS no horizonte dos próximos 20 anos?

Certamente a abertura da Saúde ao capital estrangeiro e a implementação do orçamento impositivo vão aprofundar os desafios para a construção de um SUS universal, equitativo e de qualidade. A entrada do capital estrangeiro na Saúde amplia ainda mais a mercantilização do setor. Se analisarmos as políticas de Saúde desde a década de 1950, passando pelo período do regime militar, que abriu o país para a privatização, até a década de 1990, verificaremos que, naquela época, mais de 80% da oferta pública de Saúde era feita pelo setor privado.

É neste contexto que a Carta de 1988 torna a Saúde um dever do Estado – o que obviamente requeria a ampliação de investimentos no setor público. Mas a agenda neoliberal adotada a partir de 1990 não caminha na direção do sistema público, pelo contrário, amplia os espaços do setor privado. Esta dinâmica se desenvolveu até os dias de hoje, chegando a abrir um setor essencial para a sociedade – que segundo a Constituição Federal deveria ser público, universal e gratuito – ao capital estrangeiro. Esse processo de mercantilização contraria severamente o que está descrito na Constituição Federal. Por isso, a palavra de ordem, neste momento, é: quando vamos cumprir a Constituição?

O orçamento impositivo, por sua vez, é um ataque ao planejamento governamental, porque aprofunda esse quadro negativo. Ao observar o investimento – não o custeio, mas o investimento – na ampliação da oferta de serviços de Saúde, percebemos que os montantes são relativamente muito pequenos e, via de regra, têm sido implementados a partir de emendas parlamentares. Ora, as emendas parlamentares não são regidas pelo planejamento governamental – não há um estudo sobre quais são as carências, as necessidades, como direcionar os investimentos. A lógica, neste caso, é outra e não diz respeito às demandas da Saúde, mas à base eleitoral do deputado – que não é, necessariamente, a que mais precisa de investimentos sociais e de infraestrutura. E o orçamento positivo vem reforçar o investimento em Saúde a partir deste tipo de recuso legal que ignora as regras elementares do planejamento governamental. 

Esses são dois movimentos políticos extremamente relevantes que colocam problemas seríssimos para os próximos 20 anos do país.  E as perspectivas trazidas pelo reforço do conservadorismo político  apenas intensificam este quadro. Portanto, não há a menor dúvida de que tudo isso poderá  colocar limites severos  ao fortalecimento do SUS, levando consequentemente ao aprofundamento das iniquidades sociais.

Diante deste quadro, quais seriam as políticas públicas e ações necessárias no presente para que, no futuro, o setor Saúde possa ser reconhecido como elemento primordial para a proteção social e assim venha a pautar a agenda de desenvolvimento social e econômico do país?

Transformar esse quadro implica mudanças estruturais no financiamento da Saúde, na regulação do setor privado e no pacto federativo. Também requer o  reforço o papel do Estado, a realização da reforma política para enfrentar o esgotamento do sistema partidário e de representação. Da mesma forma, será necessário superar a gestão macroeconômica pela via do chamado “tripé macroeconômico” – composto pelo regime de metas de inflação, de superávit primário e pelo câmbio flutuante. Se não enfrentarmos essas questões não colocaremos em prática o SUS que está na Constituição Federal.

O que deveria ser feito está claro. O mais preocupante é compreender a correlação de forças objetivas para que seja possível fazer  o que deve ser feito. Há quatro meses, a correlação de forças era uma; hoje é absolutamente outra. Há quatro meses, o desafio no campo social, não apenas na Saúde, era perpetuar os avanços conquistados na última década em relação a redução das desigualdades sociais, geração de emprego e ampliação da oferta de serviços públicos, com uma interação mais equilibrada entre economia e desenvolvimento social. Mas  esses avanços não apagaram as marcas profundas das desigualdades sociais do país e a ideia de universalização do acesso aos bens e serviços, que está em nossa Constituição Federal, ainda enfrenta diversos desafios para se concretizar.

Para que isso aconteça, precisamos, em primeiro lugar, de uma reforma tributária que promova justiça fiscal. O sistema tributário que vigora hoje, implantado pelo regime militar, taxa o consumo, mas não taxa o patrimônio, o lucro e nem a renda. É preciso rever, também, as políticas de renúncia fiscal, que retiram recursos da Saúde, rever o pacto federativo e enfrentar a pressão da mercantilização da oferta de serviços pelo setor público.

E não se faz isso sem um resgate da democracia. Para termos inclusão social e distribuição de renda precisamos alterar o atual tripé macroeconômico, que não converge para este objetivo social. Precisamos de uma reforma política, precisamos reavaliar o papel do Estado e o projeto de país que queremos. São medidas difíceis, porém determinantes para a universalização e ampliação dos serviços oferecidos pelo SUS e por outros programas sociais do Estado.

Porém, na prática, além do fortalecimento das políticas neoliberais, é ainda mais grave o aparente esgotamento do recente ciclo de governos de centro esquerda no Brasil. O que é surpreendente hoje – e terá forte repercussão nos próximos 20 anos – é a provável emergência  de um novo ciclo de governos conservadores, que aprofundarão a agenda neoliberal. Eu, pessoalmente, estou muito preocupado com o avanço dos setores conservadores da direita e toda a sua proposta de privatização do país e mercantilização dos serviços públicos, inclusive o SUS. Trata-se de algo bastante inusitado. 

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